23/12/2013

SEU SEGUNDO EMPREGO


Uma das figuras marcantes do século XX, Albert Schweitzer (1875-1965) já havia se tornado o organista mais importante da Europa, um aclamado biógrafo, e um teólogo de primeira linha, aos trinta anos, quando decidiu estudar medicina para devotar sua vida a ajudar pessoas na África. Em 1913, Schweitzer e sua esposa Helena viajaram para a então África Equatorial Francesa para fundar o Hospital Schweitzer às margens do rio Ogooué, onde milhares de pessoas receberam tratamento durante as décadas seguintes. Nesta passagem, o homem cuja obra inspirou o mundo nos desafia a buscar aventuras para o espírito.

Muitas vezes dizemos: “Gostaria de fazer o bem na terra, mas, com tantas responsabilidades em casa, no trabalho e nos negócios, estou sempre numa roda-viva. Ando enterrado em minhas ocupações triviais, e não consigo dar sentido à vida”.

Este erro é perigoso e comum. Para ser útil aos outros, todo homem pode encontrar à sua porta aventuras espirituais – nossa fonte de paz verdadeira e satisfação ao longo da vida. Para conhecer esta felicidade, não é preciso negligenciar os deveres ou fazer coisas espetaculares.

Esta carreira para o espírito eu chamo de “seu segundo emprego”. Nele não há pagamento, a não ser o privilégio de executá-lo. Nele você achará chances nobres e encontrará força profunda. Aqui toda a sua energia sobressalente poderá ser utilizada, pois o que o mundo mais carece hoje é de homens que se ocupem com as necessidades de outros homens. Nesta obra destituída de egoísmo, uma benção cai tanto sobre aquele que ajuda quanto sobre aquele que é ajudado.

Sem tais aventuras espirituais o homem ou a mulher de hoje caminha nas trevas. Sob a pressão da sociedade moderna, tendemos a perder a nossa individualidade. Nosso desejo de criação e auto-expressão é sufocado; a verdadeira civilização é, neste aspecto, retardada.

Qual é a solução? Não importa quão ocupados estejamos, qualquer ser humano pode configurar sua personalidade, aproveitando toda oportunidade de uma atividade espiritual. Como? Através de seu segundo emprego; através de uma ação pessoal, por menor que seja, para o bem do próximo. Ele não terá que ir muito longe procurar por oportunidades.

Nosso maior erro como indivíduos é que seguimos pela vida com os olhos fechados às nossas chances. Assim que os abrimos e deliberadamente olhamos à nossa volta, vemos muitos que precisam de ajuda, não apenas em grandes projetos, mas nas menores ações. Para onde quer que vire seu rosto, o homem poderá encontrar alguém que precise dele.

Um dia eu estava viajando pela Alemanha num vagão de terceira classe ao lado de um jovem angustiado que parecia estar à procura de algo que não podia ser visto. À sua frente estava um velho inquieto e bastante preocupado. O rapaz comentou que anoiteceria antes que pudéssemos chegar à cidade mais próxima.

– Não sei o que fazer quando chegarmos lá – disse o velho ansiosamente.

– Meu único filho esta muito doente no hospital. Recebi um telegrama pedindo que viesse imediatamente. Preciso vê-lo antes que morra. Mas sou do interior e receio que vá me perder na cidade.

– Conheço bem a cidade – replicou o jovem. – Saltarei do trem com o senhor e o levarei até o seu filho. Tomarei outro trem mais tarde.

Ao deixar o compartimento, eles caminharam juntos como irmãos.

Quem pode julgar o efeito daquele pequeno ato de bondade? Você também pode cuidar de pequenas coisas que precisam ser feitas.

Por nos sentirmos constrangidos, relutamos em nos aproximar de um estranho. O receio de ser rejeitado é motivo de grande parte da frieza do mundo; parecemos indiferentes quando na verdade, em geral, estamos apenas tímidos. A alma aventureira tem de quebrar essa barreira, decidindo com antecedência não se importar com uma rejeição. Se ousarmos com sabedoria, mantendo sempre certa reserva ao nos aproximar, descobriremos que, ao nos abrirmos para os outros, também abrimos portas nos outros.

Trabalho organizado de assistência é, logicamente, uma necessidade, mas as lacunas devem ser preenchidas por atendimento pessoal, desempenhado com carinhosa gentileza. A organização da caridade é um negócio complexo; como um automóvel, ela precisa de uma auto-estrada ampla para se mover, e não pode entrar pelos atalhos; estes são para que homens e mulheres caminhem, com os olhos abertos e os corações cheios de compreensão.

Não podemos privar nossa consciência de uma organização nem de um governo. “Acaso sou o guardião de meu irmão?” Certamente! Não posso fugir de minha responsabilidade simplesmente dizendo que o Estado fará tudo o que for preciso. É uma tragédia que hoje em dia muitos pensem e sintam o oposto.

Mesmo no âmbito familiar os filhos acreditam que não têm de cuidar dos pais. Mas as pensões dos idosos não são suficientes para livrar os filhos de seus deveres. Desumanizar tais cuidados é um equivoco porque desfaz o principio do amor, que é o pilar do crescimento dos seres humanos e da própria civilização.

Você pode achar que eu e minha esposa levamos uma vida maravilhosa na selva equatorial. Mas este é apenas o local onde por um acaso estamos. Mas você pode ter uma vida ainda mais maravilhosa aí mesmo onde está, colocando sua alma à prova através de milhares de pequenos testes, e obtendo triunfos de amor. Tal carreira espiritual exige paciência devoção e audácia. Ela requer força de vontade e determinação de amar: a maior provação de um homem. Mas nesse difícil “segundo emprego” é que se encontra a única e verdadeira felicidade.


“A vida é muito curta para ser pequena”.

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